Elas só querem treinar
Se você é mulher e tem a corrida como hobby ou esporte, já deve ter sido assediada em um dos seus treinos - principalmente se ele for outdoor. Você provavelmente já teve que se preocupar com o caminho que iria fazer até o parque, ou o percurso escolhido na rua. É provável que antes mesmo de ter saído de casa, tenha se preocupado com que roupa iria correr. Inclusive, já deve ter passado calor por não ter tido coragem de tirar a camiseta e só ficar de top. Sair para correr muito cedo? Jamais. Sair para correr tarde da noite? Nem pensar.
Já vivi todos os questionamentos acima, não foi uma ou duas vezes, acontece quase que diariamente e em boa parte, quem ganha mesmo é a esteira da academia do meu prédio. Não é mais prazeroso do que correr no parque, com o vento na cara, mas pelo menos eu estou em “segurança”. Quero dizer, “falsa segurança” porque o assédio pode acontecer no evelador e até mesmo na academia do prédio. Não estamos imunes.
Não é mimimi, é só querer treinar em paz mesmo.
Gisele Trento Andrade e Silva, 39 anos, natural de Criciúma - SC, esportista amadora na corrida, bike, natação, musculação e pilates. É mãe do Mateus, esposa do Estevan, Bióloga com especialização em educação ambiental e gestão empresarial estratégica, atualmente é professora de Biologia no ensino médio e cursinho pré-vestibular. É também a mulher por trás do perfil "Só quero treinar" que, com três meses e meio de existência, acumula mais de 11 mil seguidores e MUITOS (!) relatos, alguns publicados anonimamente, sobre assédio e estupro sofrido por mulheres duramente treinos de corrida.
Falamos por 1h no telefone, relatos de arrepiar até o último fio de cabelo, além de sororidade e empatia, terminamos a entrevista como amigas de infância, coisas que só o esporte, feminismo e empoderamento podem fazer entre duas mulheres que nunca tinham trocado qualquer tipo de mensagem.
Juliana Manzato: Ainda existem muitos homens - e mulheres! - que acham que todo esse movimento é mimimi. Você não recebeu críticas nesse sentido com a criação da página?
Gisele Trento: Existe, mas é muito pouco. Até por que um dos objetivos da página é passar dicas de como deixar o treino mais seguro e tranquilo. Empoderamos mulheres e também mostramos aos homens que, aquilo que pode parecer um elogio para eles, é extremamente ofensivo para nós, mulheres. E bem, se o elogio causou qualquer tipo de constrangimento, não é elogio.
JM: O @soquerotreinar vai muito além de dicas de segurança no treino de corrida para mulheres, qual é o objetivo principal?
GT: Empoderar mulheres para praticarem o esporte fora da esteira. Queremos ir para rua e conquistar um espaço que é nosso por direito sem sermos importunadas durante o nosso treino. Assédio não é algo normal! Criar uma rede de apoio como a página para mulheres compartilharem histórias, relatos e principalmente, dar dicas de segurança é só o começo para mostrar para os homens - e mais mulheres - que temos voz e podemos encontrar apoio uma na outra. Afinal de contas, todas nós - infelizmente - já sofreu algum tipo de assédio.
Enquanto Gisele vai me contando sobre os relatos, vou me identificando com muitos deles. Já fui perseguida no trajeto até o parque, já aumentei o volume do fone do ouvido para não ouvir o que aquele homem que passou por mim falou, entre tantas outras coisas. Na página, Gisele compartilha relatos como esses aqui:
A corrida deveria ser algo simples, colocar o tênis e simplesmente sair correndo, mas... não é bem assim. Não para mulheres.
JM: Foi por conta de um assédio que você sofreu que veio o start para criar a página, certo?
GT: Sim, foi no segundo semestre do ano passado. Estava me preparando para a meia maratona de Florianópolis e iniciando treinos de bike para o meu primeiro Triatlon. Treinos para essas competições são longos, e por vezes é muito difícil achar cia para treinar junto, então para cumprir planilha você acaba treinando sozinha, principalmente nos finais de semana. Em nenhum dos treinos eu tive paz, sempre existia algum tipo de assédio. O mais grave aconteceu em um dos treinos de bike, percebi que estava sendo perseguida e que inúmeras vezes o motorista passava com o carro muito próximo ao meu corpo com a intenção de tocar em mim. Com medo e já pensando no pior, vejo o motorista vindo em minha direção novamente, e fazendo gestos obscenos. Não pensei duas vezes, avistei uma mulher e pedi refugio em sua casa. Nesse dia meu marido precisou ir me buscar para ir embora. Além do medo, pânico e trauma, existe a frustração de não ter consigo terminar o treino, o motivo não foi fadiga muscular ou qualquer coisa do tipo, foi assédio mesmo.
Gisele ainda me conta que a ideia do perfil era ser mais regional, mas acabou ganhando o Brasil - e o mundo - com relatos de brasileiras corredoras espalhadas pelo globo. Era uma mulher compartilhando vivências de assédio, estimulando outras tantas mulheres a também compartilharem suas histórias criando assim, uma grande rede de apoio.
Muitas dessas mulheres não querem ter suas histórias compartilhadas, mas só o fato de ter do outro lado uma figura feminina para conversar sobre o assunto é reconfortante: “Eu só quero conversar com alguém que me entenda, por que se eu contar para o meu marido ou namorado, ele não vai mais me deixar sair para treinar”, esse é um dos relatos mais comuns que Gisele recebe no perfil.
JM: Diante de tudo isso que aconteceu com você e com as histórias que chegam ate o perfil, o que é mais gratificante?
GT: Ajudar mulheres que sofreram assédio voltarem a corrida. A rede de apoio que se formou com o perfil foi uma enorme, e uma gratificante surpresa. Mulheres mudaram seus treinos, ganhando qualidade e um pouco de paz com as dicas e os assuntos abordados no perfil. Recebo relatos de mulheres que vivenciaram a tentativa de estupro e que pensaram em desistir da corrida por causa disso, e acharam no perfil força e motivação para continuar.
Fica cada vez mais evidente para mim, que todas nós queremos uma única coisa: treinar em paz. Viver em paz! Fica em paz!
Queremos respeito com o nosso corpo, com as nossas escolhas e principalmente, liberdade para treinarmos a hora que quisermos em segurança. Precisamos urgentemente mudar também o pensamento de muitas mulheres que ainda julgam por conta da roupa de treino, a prática de esporte e tantas outros motivos, uma outra mulher.
Precisamos de mais perfis como o @soqueroteinar. Mas no fundo, o que nos precisamos mesmo é respeitar o espaço e a escolha do outro. Estamos no caminho, longe do objetivo final, mas ainda assim, no caminho.
Obrigada Gisele, por tamanha iniciativa!
Elas só querem treinar
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